domingo, 12 de dezembro de 2010

Santificados sejam os nossos mortos

   Beltrão morreu.
   Quando vivo, era mal falado. Um mulherengo, todos diziam. Ou pior, um pretenso mulherengo. Manjado, já não caíam no seu papo. Tentava com todas, ninguém lhe dava bola. E era um encostado. Não trabalhava, nem queria. Vivia de favor, muito contente com isso. Arranjava um ou outro bico, só para comprar birita.
   Mas Beltrão morreu. E por ter morrido, virou santo. As mesmas bocas que o mal falavam agora são – como se autoproclamam – menos intolerantes. Beltrão era muito comunicativo, carinhoso com as pessoas, tentava se aproximar de todo mundo. Dada sua simpatia, algumas mulheres não compreendiam bem suas intenções. E era um desfavorecido. Por mais que tentasse, por motivo de perseguição, nunca se mantinha em um emprego. Pobre coitado! Só lhe restou a bebida para afogar sua frustração.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Banco

Um banco é só o que precisam. Nada mais. Perto de flores? Em um dia bonito? Uma música de fundo? Tudo isso é bom, acréscimos. Mas só precisam mesmo de um banco. Não uma rede, não um gramado, não uma casa, nada muito sofisticado. Só um banco. Sem muitos requisitos... Não precisa ser muito confortável, nem ter braços, ou encosto. Só um banco. Em uma praça, parque ou shopping... com ou sem pessoas ao redor, tanto faz. Desde que os dois estejam juntos, só precisam de um banco.

sábado, 27 de novembro de 2010

Estática

   A televisão estava com problema. Há horas não recebia nenhuma transmissão, apenas estática. Ela não parou de olhar para o aparelho, mesmo assim. Passou a observar aqueles pontinhos brancos e pretos, que não lhe diziam nada, apenas se mexiam de maneira caótica, sem um significado. Ela não parou para pensar nisso, olhava mesmo assim... Estava tão acostumada a ficar naquela posição, sem fazer nada, sem pensar em nada, que já não se lembrava de como fazer outra coisa. Ela já havia se acostumado à estática...

domingo, 21 de novembro de 2010

Puxando a cadeira

  Ele puxou a cadeira para que ela se sentasse. Um cavalheiro, pensou. Há quanto tempo não puxavam a cadeira para ela? Parecia um gesto esquecido, uma gentileza ultrapassada, que ficou no tempo. Quando foi que pararam de puxar as cadeiras para as damas se sentarem? Por que esse hábito caiu em desuso? Ou seria a própria gentileza que estava fora de moda? Ela se sentou. Um cavalheiro, pensou novamente. Eles ainda existem...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Caminhar

   Andava olhando para as estrelas... perdia o chão. Batia em algo, escorregava, caía. Passou a andar olhando o chão. Tinha certeza de onde pisava, segurança quanto à caminhada. Porém... ao fazer isso, perdeu as estrelas. Agora anda olhando para frente, contemplando o horizonte. Quando o piso é mais irregular, olha para o chão e garante sua sustentação. E antes de sair para caminhar, olha as estrelas e traça seu rumo.

sábado, 6 de novembro de 2010

Cardápio

   Novamente naquele restaurante. Cardápio em mãos, olhava as opções. Gostava do lugar, mas sempre pedia o mesmo prato. Decidiu olhar o que mais havia... A maioria dos pratos continha algo de que não gostava. E dentre aqueles que gostava, nenhum se comparava, sequer chegava perto, do que sempre pedia. Era sempre assim... quando ia àquele restaurante, olhava todas as opções do cardápio só para se lembrar por que pedia o mesmo prato todas as vezes.

domingo, 31 de outubro de 2010

Mentirinha

   Vi em seus olhos a importância que tenho em sua vida.
   Foi assim, de repente, em uma brincadeira. Estava com viagem marcada e inventei que havia a possibilidade de que não voltasse mais. Ela arregalou os olhos, abriu a boca e empalideceu. Perguntou, praticamente afirmando, que era mentira, que eu voltaria, estava só brincando. Respondi que não tinha planos de ficar, mas nunca se sabe... Não parou de apresentar motivos para que eu voltasse. Inesperado! Não achei que fosse sentir tanto a minha falta, não partindo dela. Disse que voltaria sim, estava brincando. Ela relaxou.
   Ganhei o dia: eu me senti gostado.

domingo, 24 de outubro de 2010

Pose para a foto

Conheceram-se na própria festa e ficaram conversando. Notou como ela era bonita. Tão bonita que ele concluiu, plenamente ciente de sua feiura, que não teria qualquer chance. Valeria a pena tentar? Alguém chama a atenção dos dois, pose para a foto. Flash! Ela quis ver, o fotógrafo mostrou. O feio comentou “A foto ficou meia bonita” e riu da própria piada. Sabia que em geral se fala “meio bonita”, para significar “um pouco bonita”, só que usou intencionalmente “meia bonita” para querer dizer “bonita pela metade”, ou seja, a metade dela, ele era a feia. Ela não entendeu a piada e, de repente, ele não a achou mais tão bonita assim...

Sinal vermelho

  Parou o carro. Não vinha nenhum outro, cruzando a pista. Porém, parou. Esperou. Viu outro carro parar ao seu lado, esperar um pouco e depois avançar o sinal. Esperou. Nenhum carro cruzava, contudo lei é lei. Um carro passou na outra faixa, ao seu lado, sem nem titubear. Simplesmente ignorou a cor do semáforo. Esperou... Aquele sinal não costumava demorar tanto. Talvez estivesse com defeito. Olhou mais uma vez, certificou-se de que era seguro e passou.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Fechadura

  Colocou a chave na fechadura, como sempre. Tentou girá-la, não conseguiu. Já há um tempinho tem tido problema para abrir a porta. Tirou e colocou a chave de volta, tentou girar de novo, mais um insucesso. Bufou! Aquela chave sempre funcionou, qual era o problema? Como pensou em voz alta, um jovem ao lado respondeu: “É a fechadura. Com o tempo ela muda. Você vai precisar atualizar a sua chave, senão um dia não vai abrir mais nenhuma porta”.

Lavar as mãos

  Abriu a torneira, a água jorrava. Molhou-as bem, passou o sabonete. Esfregou intensamente. Passou uma mão na outra, várias vezes, por cima, por baixo, na palma, cada um dos dedos, até de baixo das unhas. Repetiu o movimento diversas vezes. Esfregou as mãos na água por longo tempo, tentando insistentemente livrá-las de qualquer impureza. Limpava as mãos freneticamente. Há muito havia tirado as manchas de sangue, mas não conseguia fazer escoar pelo ralo a culpa.

Espreguiço

  Estava sentado ao sofá, na sala, junto com sua mãe. Como acabou a conversa, ela pegou sua revista e começou a ler. Sentindo aquele sono pós-almoço, ele espreguiçou. Tinha a mania de gritar enquanto espreguiçava. Não um grito agudo, estridente, e sim um grave e contínuo grito. Todo mundo achava esquisito. Já esperando a cara de estranheza da mãe, olhou-a. Nada. Lia a revista normalmente. Começou a rir incontrolavelmente. Como as pessoas se acostumam à loucura das outras! Ela disse nem ter escutado o barulho. Ele frisou, entre risos múltiplos, que não tinha como ela não ter escutado.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Acidente

  Passava pela rua. Havia um tumulto logo a frente, um monte de pessoas amontoadas em torno de algo. Percebeu um carro virado e amassado, era um acidente. Prestou atenção ao modelo, não era o de parentes nem amigos mais próximos. Olhou para o outro lado da rua, um banquinho. Uma mãe amamentava seu neném. Passou com o carro, não olhou o acidentado, preferiu admirar a vida.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Pelos olhos dela

  Não conseguia entender. Tinha como hábito deixar o jornal em cima do sofá, aberto na página que estava lendo. Era mais prático, continuava depois. Por que ela sempre reclamava? Era só colocá-lo em cima de outro lugar, se precisasse do sofá. Mas, desta vez, sua visão branqueou e viu as mãos dela, como se fossem as suas, pegar o jornal, sentindo a boca se mover para continuar reclamando. Jogava-o em outro lugar, olhava para ele. Viu a si mesmo, não como quem se olha no espelho, mas como se fosse outra pessoa. Pela memória dela lembra o tempo em que dividiam não só o sofá, como também a atenção um do outro, quando se sentavam nele. Sua visão voltou ao normal. Passou os dez primeiros minutos da novela olhando para o semblante dela, até que ela parou de assistir.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Caixa de bombons

  Mais uma pessoa que chega. Feliz aniversário! O presente: uma caixa de bombons. Todos os amigos sabem o quanto gosta de chocolate, este aniversário iria se esbaldar. Agradeceu e guardou a caixa, junto com chocolates em barra, trufas e outros doces. Uma de suas amigas, sentada ao lado, encostou a cabeça no seu ombro e, por ter mais intimidade, pediu um bombom. Imediatamente pensou que se abrisse a caixa teria de distribuí-los por todos na mesa, umas... vinte pessoas? Pensou em abrir a caixa discretamente, pegar um bombom e dar à amiga, mas... diabos, tinha tanto chocolate ali! Abriu a caixa e pediu para que passasse adiante.

domingo, 29 de agosto de 2010

Cafezinho

  Ele sopra o café dentro do copinho de plástico. É quase ritualístico, o café pelando, sopra para esfriar, não todo. Dia estressante de trabalho. Reestruturação no setor, chefe cobrando montes de tarefas, clima tenso, colegas quietos. Muito trabalho! As costas doem. Só o cafezinho pode salvá-lo. Está bom de soprar. Bebe um golinho, quente no ponto. Docinho, forte. O sabor do café, um breve relaxamento, uma pausa na tensão do dia, no contínuo esforço do trabalho. Só o cafezinho é capaz disso. Bebe até a última gota, saboreando. Dá um suspiro, aliviado. Já pode voltar a trabalhar, está recuperado.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Recaída

  A ex-namorada passou bem a sua frente. Normal, quando terminaram, tornaram-se amigos. Só que o cheiro... Ao passar na sua frente, seu perfume se espalhou no ar e se instalou nas narinas dele. Um monte de lembranças lhe veio a mente. O primeiro encontro, o primeiro beijo, as noites em que ficavam, lado a lado, lendo cada um seu próprio livro, ainda assim juntos. Seu cheiro... seu cheiro estava presente em todos esses momentos, esse mesmo cheiro que sentia agora. Pensou em ir até ela, que nem o notou, e pedir uma nova chance, apesar de ter sido ele a terminar o relacionamento. Ela se distanciou, o cheiro passou, ele saiu do transe. Pedir uma nova chance? Não... Nunca pensou que o aroma tivesse tanta força.

domingo, 15 de agosto de 2010

Escorregão

  Não viu a poça de água. Maldito ar-condicionado, pingando na calçada. Leva um tremendo tombo, na frente de todo mundo. Ninguém que conhece – ufa! – pelo menos. Bom, não há remédio, o jeito é levantar. Recompõe-se como pode. Limpa a roupa, ergue a cabeça e volta a andar. Fazer o quê? Nas próximas vezes, terá mais atenção para não escorregar na mesma poça. E tomará mais cuidado com ar-condicionado. Pode até cair em outro lugar, não se está livre de todas as quedas, a não ser que não se ande. Caindo e aprendendo.

domingo, 8 de agosto de 2010

Desencontro

   Ligou para a amiga e perguntou onde ela estava, embora isso não importasse, só queria vê-la. Ela respondeu, embora ainda não soubesse para onde iria dali a alguns instantes.
   Ele foi, não para onde ela estava, mas para onde ela esteve. Não a encontrou. Foi quando ela ligou. Deu-se conta de que se ele perguntou, talvez tivesse a intenção de encontrá-la. Marcaram um ponto, para evitar novo desencontro (na comunicação e na localização).

sábado, 31 de julho de 2010

Borrão

   Quando entrava no carro, já estava atrasado. Pé na tábua! Mãos a obra! Vamo-que-vamo! O velocímetro gira, o piloto vê a pista passar correndo. Quando foi a última vez que parou para admirar a paisagem? Não há mais tempo! Ainda atrasado, acelera. Nas janelas do carro, um borrão. Pega a fatia de pizza, meia comida, dá mais uma mordida apressada. Pisa fundo. A vida passando tão rápido que não passa de um vulto aos seus olhos, com pequenas variações de cor, quase sempre cinza, como se fosse uma única imagem, uma só coisa, tão rápido, passa, foi!

sábado, 24 de julho de 2010

No escurinho do cinema

   Cena final, o filme acabou. Enquanto subiam os créditos, ficou pensando sobre a história. Olhou para a amiga ao lado, perguntou se gostou. Disse que sim. Olhou-a nos olhos, depois os lábios. Convidou-a porque uns amigos aconselharam. O filme cria aquele clima, envolve a garota. Além disso, o escurinho diminui a vergonha e facilita a aproximação. Porém, sempre que convidava alguém para ir ao cinema, ficava tão envolvido com a história que esquecia que o objetivo era o beijo. Mudaria de estratégia, essa não estava dando certo, embora aproveitasse bem os filmes.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Rompimento

   Maluquice! Era a última vez que brigava assim ao celular, escondido da família. Era muita encrenca, muita cobrança, muita encheção. Isso quando ela não ameaçava, meio de brincadeira, meio sério, abrir a boca e contar tudo. Decidiu romper relações. Loucura! Arranjara uma amante para suprir um desejo que sua mulher já não satisfazia. Em vez de melhoria, tivera problemas em dobro. Amante nunca mais!

domingo, 11 de julho de 2010

Algodão-doce

   Viu um vendedor de algodão-doce. Lembrou-se de como gostava daquela porcaria, quando pequena. Viu aquela coisa fofa e rosa, flutuando dentro de um saco plástico. Qual era mesmo o sabor? Pensou um pouco e formulou sua resposta: sabor de infância. Levantou a mão, chamou pelo vendedor. Por que mesmo ela deixou de comer? Que besteira! Pediu um. Teve a satisfação de estourar de mansinho o plástico e, sorridente, deu uma mordida. Sentiu aquele gosto de puro e intenso açúcar. Lembrou-se por que havia parado de comer. Deu o resto a uma criança do parque.

domingo, 4 de julho de 2010

Lentes limpas

   Quando bate a luz de lado em seus óculos, percebe o quanto está embaçado. Vez por outra precisa limpar as lentes, é assim mesmo. Decidiu fazer uma limpeza especial dessa vez, para enxergar direitinho. Colocou os óculos de volta e viu um colega de serviço escrevendo relatório que o prejudicava, um suposto amigo. Olhou para o outro lado e viu uma das colegas lhe abrir um sorriso mais do que simpático, um sorriso interessado. Bem a sua esquerda, mexendo no computador, um colega desviava verba da empresa para si mesmo. Espanta-se. A colega interessada pergunta se está tudo bem, ele está com os olhos arregalados. Respondeu que sim, nunca enxergou tão bem.

domingo, 27 de junho de 2010

Torcicolo

   Ela andava com a cabeça virada para trás. Tudo que via era o que já tinha passado. Nada do momento. As pessoas, só se distanciando. Não via o garçom equilibrando os copos, só depois que já havia passado. Tarde demais para pegar uma taça.
   Não via nada do porvir. Não se preparava para desviar a rota, colisão na certa. Tantos trombos! Ia derrubando mesa, cadeira, estante... livros ao chão! Quando via, era passado. Não teve como evitar, já estava feito. Restava olhar penosamente para os frutos dos seus atropelos, já cometidos...

domingo, 20 de junho de 2010

Copo d'água

   Um copo em cima da bancada. Pleno, água até o topo. Ela bebe sem cautela, há muita. Uma poça se forma na pia, usa mais água para limpar a água que derramou.
   Um copo em cima da bancada. Cheio, mas não tanto. Ela bebe, deixa sobrar um pouco. Joga o restinho fora, é lixo.
   Um copo em cima da bancada. Água até três quartos. Sua mão agora mais adulta. Bebe tudo.
   Um copo em cima da bancada. Água até a metade. Mão com mais idade. Toma com cuidado, para não derramar nada, para não desperdiçar.
   Um copo em cima da bancada. Um quarto de água. Mão já idosa. Toma com avidez cada gota. Ainda com sede, lembra-se do tempo em que água foi abundante.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

De onde vêm as ideias?

   Um dia eu estava pensando sobre criatividade. De onde vêm as ideias para se escrever um texto? Às vezes de um outro texto ou obra artística. A ideia pode ser uma nova abordagem sobre o mesmo tema, ou um novo tema para a mesma abordagem. Às vezes do estudo sobre um assunto. Discorrer sobre o tema não de maneira literal, e sim literária. Às vezes de uma emoção. Sua transcrição em palavras. Às vezes de uma conversa a dois, às vezes de uma reflexão solitária... Às vezes de algo que se vê. Um olhar interpretativo lançado sobre coisas cotidianas. Uma imagem qualquer, do dia-a-dia... qualquer imagem. Qualquer uma? Passei a pensar em qual não inspiraria uma história, ainda que curtinha. Então concluí que não há de onde não tirar inspiração, as ideias vêm de todos os lugares. E a partir daquelas imagens das quais eu "tentava não tirar uma ideia", nasceram diversos textos. Este blog é uma seleção daqueles que acabaram vindo e ainda me vêm. Textos curtos, a partir de imagens comuns, ainda assim, cada um com uma mensagem. A cada domingo vou postar um texto novo. Que tal dez linhas para começar sua semana?