sábado, 10 de setembro de 2011

Vitrola quebrada

   Toda vez que passava pela sala, o papagaio lhe dizia o que fazer, como deveria ser, e tudo que estava fazendo de errado. Às vezes ela dava uma resposta atravessada, às vezes tentava provar que o papagaio estava errado. Mas não tinha erro, era parar de falar, o papagaio repetia exatamente o que havia dito. Cansada de se irritar, ela tentou argumentar. Trouxe raciocínios lógicos e bem fundamentos, pôs a questão em discussão, abertamente. Porém, nada adiantava. O papagaio repetia as mesmas coisas de sempre, como se ela nunca tivesse explicado sua posição, como se nunca tivesse exposto sua forma de pensar. Percebendo que seu gesto se dava em vão, ela passou a ignorar o papagaio, que nunca parou de repetir as mesmas frases.

domingo, 17 de julho de 2011

Fachada

   O empresário teve a ideia para fazer com que seu prédio tivesse mais movimento. Uma fachada velha e acabada não atrairia mesmo nenhum cliente. Entrou em contato com os lojistas, apresentou a proposta e logo se iniciaram as obras. Em meses aquela fachada sem graça foi substituída por uma moderna e elegante nova fachada.
   Algumas pessoas visitaram o lugar pela primeira vez, mas o movimento não aumentou. Os lojistas ficaram irritados, pois pagaram taxa extra pela melhoria, mas não tiveram retorno, esquecendo que eles eram essencialmente o que não havia mudado.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Dois pássaros na calha

   Um pássaro estava na calha. Cantante, sozinha. Outro pássaro apareceu, posou ao seu lado. Aproximou-se, encostou-se. A cantante aconchegou-se. Ficaram ali, os dois pássaros, na calha. Não cantavam, não pulavam, não perseguiam com o olhar outros pássaros voando pelos céus. Apenas estavam ali... um ao lado do outro.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Minha namorada

   Acho que quando ele dizia isso vinha uma espécie da satisfação, de paz, de sossego, febre alegria. Não era uma desconhecida por quem nutria amor platônico, não era uma amiga por quem ele esperasse resposta de uma possível tentativa de um romance, não, ela era Sua namorada e ela mesma gostava de dizê-lo e isso dava a ele um não sei o quê de satisfação. Ela observava isso às vezes , de longe, e ficava lisonjeada, ria-se da criancice que tomava os  olhos dele enquanto falava “minha namorada “. Ela também entrava na brincadeira e nesse vai e vem de brincadeira, de minúcias nos olhos dele , ela foi se acostumando, adentrando e decifrando os olhos de alguém por quem apaixonou-se profundamente.
Texto escrito através de meus olhos,
mas pelas mãos de Pérola Priz,
minha namorada.

sábado, 4 de junho de 2011

Insensível

   Acabou e ele nem ligou. Parece que nunca deu importância. Agora, antes não parecia, embora certamente não desse. E terminou o relacionamento assim, sem um motivo plausível, só uma desculpa esfarrapada politicamente correta. E desapareceu por completo. Nunca mais... Como ele pode me fazer sofrer tanto e isso não lhe gerar o mínimo incômodo? Como ele pôde sequer considerar o que eu sentiria?

sábado, 28 de maio de 2011

A maioria

Cem pessoas, que viviam no mesmo prédio, dividiam opiniões sobre como deveriam ser usados os aparelhos da academia. Umas opinavam que deveria ser por ordem de chegada, outras que deveria ser feito agendamento. Alguém propôs um debate, mas quem tem tempo para isso? Escolheram a votação, uma opção democrática. Cinquenta e uma decidiram pela ordem de chegada, deixando quarenta e nove pessoas insatisfeitas.

sábado, 21 de maio de 2011

No fundo do oceano

   Há tempos mergulho em busca de algo realmente de valor. Nunca me aventurava tanto, nunca ia tão fundo. Me incomodava a dependência de aparelho para respirar. Aos poucos fui ganhando confiança e me arriscando mais. Às vezes parecia ver um brilho, algo que despertasse em mim uma sensação jamais sentida. Não era o que havia imaginado...
   Já estava desistindo, já pensava em emergir e esquecer isso, quando ali, nas profundezas do oceano, eu encontrei, ou ela me encontrou. Abri a ostra que a escondia e lhe dava a sensação de proteção, e lá dentro pude ver a preciosidade. Pérola: delicada, pura, linda... única.

sábado, 14 de maio de 2011

Oportunidades

   Olhou o guia de programações para decidir o que faria. Uma festa? Não. Poderia ouvir músicas tristes que o deixariam deprimido. Um filme? Não. Talvez gostasse demais da história e depois iria sentir falta dela. Lembrou-se de que a Glória o convidou para jantar... Não. Talvez ela quisesse se envolver com ele, depois namorar. Um dia o relacionamento possivelmente terminaria e ele sofreria muito. Decidiu não fazer mais nada. Daquele dia em diante!
   E passou muito tempo assim, sem fazer nada significante, nada que pudesse causar-lhe algum mal. Como não sofria há algum tempo, chamou a esse vazio de “felicidade”. Certamente muitos diriam ao amigo que essa não é a melhor escolha de palavras, mas já não fala mais com os amigos. Afinal, eles podem lhe tirar sua finalmente conquistada “paz”.

domingo, 8 de maio de 2011

Extinção

   Um homem cortou uma árvore. As flores ao redor morreram. Os pássaros foram embora. A floresta extinguiu-se. O homem perdeu a sombra da floresta, a beleza do canto dos pássaros, o perfume das flores e os frutos das árvores.

sábado, 30 de abril de 2011

Desequilíbrio

   Seu namoro acabou. A partir de então, passou a andar um pouco inclinada, para o lado. Não conseguia evitar, mesmo que percebesse. Andava desse jeito, meio desequilibrada... conseguia. Só que, na faculdade, a professora pediu um trabalho difícil, sobre um assunto que ela não entendia. Inclinou-se mais um pouco, um pouco mais pendia para o lado ao andar. Ao chegar em casa, seu computador não funcionou. Não seria nada se não estivesse tão inclinada, porém, foi ao chão e lá ficou, chorando, totalmente desequilibrada.

domingo, 24 de abril de 2011

Correnteza

   A água corria, e escorria por entre seus dedos. Parado no meio do rio, a correnteza passava por seu corpo em um dia ensolarado. O jovem mantinha as mãos abertas, submersas. Sentia a água fluindo irrepreensivelmente por seu corpo. Ele não poderia detê-la. Ainda assim, fechava suas mãos e as erguia. Nem mesmo aquela pequena quantidade do líquido se mantinha. Quando olhou, já ao entardecer, percebeu o quanto suas mãos estavam enrugadas. Submergiu-as novamente, as palmas voltadas para a irremediável correnteza. Sua vontade era mudar sua direção, ter de volta aquilo que passou. Porém, nem mesmo conseguia conter entre seus dedos uma quantidade significante da água. Como pretenderia mudar seu sentido? Já era noite quando ele finalmente se convenceu – embora antes já soubesse – de que não adiantaria tentar parar a correnteza. Olhou suas mãos, as águas escorrendo dos dedos mais uma vez. Por trás dela podia ver, no reflexo da água sob a luz da lua, seu rosto também enrugado.

sábado, 16 de abril de 2011

Antolhos

  Pobre cavalo! Usa antolhos e nem percebe. Acredita piamente que a visão que tem é A visão correta. Convenceu-se de que não há nada superior àquilo que entende como verdade. A partir desse dia, tudo mais que viu, interpretou com base naquilo que já conhecia. Aprisionado pela viseira, que direciona sua visão, não aceitará nunca que uma visão diferente é tão válida quanto a sua, e quanto qualquer outra. Afinal, acredita piamente que só os outros cavalos não enxergam. Porém, pergunte à ele se enxerga-se dessa forma? Ele responderá que só a ignorância estreita a visão dos cavalos, esquecendo-se de que o conhecimento também serve muito bem, até melhor, à função de tapa-olhos. Talvez esquecendo-se até de que ele mesmo também não passa de um cavalo.

sábado, 9 de abril de 2011

Homens!

   Terminou de assistir ao filme e xingou o personagem principal. Era um homem movido a desejo, que se entregava a qualquer mulher bonita que lhe jogasse um charme. Tão volúvel e sem comprometimento quanto qualquer homem, na vida real. Era isso que mais lhe irritava: ele espelhava os canalhas que são todos os homens.
   No fim de semana encontrou-se com o sujeito que conheceu em uma boate. Após flertes, trocas de elogios e insinuações, resolveu baixar suas defesas e deixou que a beijasse. Conversaram, beberam, conversaram mais, beberam mais e lá pelas tantas da madrugada estavam em um motel.
   Segunda-feira, no trabalho, comentou o filme com as colegas. E comentou o encontro que teve. Elas reagiram de mesma forma negativa em relação ao personagem do filme e de mesma forma passional em relação à aventura romântica. Pensa-se com o cérebro, sente-se com o coração.

sábado, 2 de abril de 2011

Chocolate

   Tinha uma verdadeira fissura por chocolates. Só de pensar, ficava com vontade de comer. Às vezes via algo com aquela marcante cor marrom e pensava ver um chocolate, embora não fosse. Contudo, não gostava da sensação de ser dominada por um impulso. Empenhada em se ser dona de si mesma, decidiu nunca mais passar em frente às confeitarias. Não olharia para os chocolates acima dos caixas das padarias. Daria a volta no mercado para contornar a seção dos chocolates. Assim, evitaria o desejo.
   Um dia foi encontrada no chão de seu apartamento, os olhos abertos, mas distantes, delirantes. Chocolate derretido contornava sua boca e respingos grossos podiam ser vistos ao redor do corpo. Após tempos fugindo de qualquer tipo de tentação, recebeu, de um amigo desavisado, uma imensa cesta como presente de aniversário, repleta de chocolates. O contato foi inevitável, comeu-a inteira de uma só vez.

domingo, 27 de março de 2011

Carregando uma caixa

   Lá ia ele carregando a pesada caixa. Tinha nela uma série de bugigangas, coisas compradas ao longo de vários anos. Pesada, usava as duas mãos, com esforço. No caminho, viu uma outra caixa. Como estava sem tampa, pode vislumbrar o que havia dentro. Avaliou rapidamente e percebeu que era uma caixa melhor que a sua. Tinha diversas coisas interessantes e úteis. Porém, não tinha tudo o que já tinha. Pensou se conseguiria carregar as duas caixas... impossível! Aquela caixa era ainda maior, certamente mais pesada do que a sua. Pensou em levar só a caixa nova, depois voltaria e veria se a caixa velha ainda estava ali. Mas não o fez. Incapaz de soltar o que já tinha em mãos, seguiu com sua própria caixa. Quando voltou, a outra já não estava mais lá.

sábado, 19 de março de 2011

O som da própria voz

   Ela adorava o som da própria voz. Falava, falava e falava... Quando alguém tentava opinar, contra-argumentar ou mudar de assunto, não deixava. A voz dos outros não era, nem de longe, tão bonita quanto a sua, tão digna de ser ouvida. Com o tempo, foi tendo ainda mais certeza da sua opinião, a ponto de desenvolver uma espécie peculiar de surdez: não ouvia a voz dos outros, só a própria.

sábado, 12 de março de 2011

Falta de percepção

   Eu estou falando isso para ele. Contando a história de outra pessoa, mas a história é para ele ouvir e refletir sobre si mesmo, embora se perguntasse, eu negaria veementemente. Estava apenas contando uma história...
   Mas quero que reflita a respeito. Fico me perguntando: será que ele não percebe que é para refletir a respeito? De si mesmo, de sua vida, de suas atitudes? Não... ele sabe que é para ele que estou falando. Só que eu sou cabeça-dura demais para que ele ponha o assunto em debate. E isso é algo que eu nunca vou perceber... Muito menos que ele percebe que a mensagem é direcionada a ele, que finge não perceber para evitar o conflito.

domingo, 6 de março de 2011

Bolinha nas costas

   Rafael jogou uma bolinha de papel nas costas de Paulo Henrique. Ele virou, com cara de “o que é?”. Rafael, em cochichos, perguntou: “Qual é a próxima aula?” Paulo Henrique: “geografia”. Rafael, novamente: “E depois?” Paulo Henrique respondeu “matemática” e virou-se para frente. Deu-se conta, então, de que já estavam no quarto bimestre. As aulas seguiam a mesma ordem desde o início do ano. Virou-se para Rafael e perguntou: “Você ainda não gravou qual é a sequencia das aulas? Até agora?!?” Rafael deu de ombros.
   Paulo Henrique ficou pensando em como ele, já na van a caminho da escola, relembrava todas as manhãs quais seriam as matérias do dia, já esperando (com certo pesar) o que vinha pela frente. Seu pensamento foi interrompido por mais uma bolinha nas costas, de Rafael: “É hoje que a gente tem aula de educação física?”

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Chame um especialista

   “A lâmpada da dispensa parou de acender”, gritou-lhe de longe a esposa. Sem tirar os olhos da televisão, após alguns segundos ele grita que chame um eletricista. Antes o marido pelo menos ia até o local, via se podia resolver por si mesmo, se era apenas uma lâmpada queimada... ela reclama. Deu o intervalo e ele pelo menos se deu ao trabalho de inventar uma desculpa: não era um especialista. Ela teria que chamar uma pessoa que entendesse do assunto para resolver, ele era só um contador.
   Na semana seguinte, chegou em casa e precisou logo ir a dispensa. Observou que a luz estava funcionando. Chegando à sala, perguntou se a mulher chamou um eletricista para consertar o problema. Ela disse, lá do quarto, que sim. Então ele adentrou e se deparou com um desconhecido sujeito, másculo, que se vestia apressadamente: o que é isso? Ela respondeu com toda calma que, já que o marido não estava fazendo sua parte, ela contratou um especialista.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Causa mortis

  Sua vida era ter ideias. Um poço de criatividade ambulante, sempre olhando as coisas e pensando em como poderiam ser diferentes, ou fazendo novas combinações, ou apenas criando de acordo com um novo estilo. Também parava, pensava sobre um assunto e assim, sem nenhum estímulo externo, naquele instante de introspecção, surgia mais uma ideia. Procurava colocar em prática aquelas que podia. As que não podia, anotava. Quem sabe um dia poderia? Só não podia deixar a ideia simplesmente surgir e sumir.
   Essa era a sua função em vida, a razão de sua existência. Tinha tanta certeza disso que costumava brincar que sua vida acabaria quando já não tivesse novas ideias. “Soube do Guilherme? – Não. O que houve? – Ele morreu. – Sério? Que triste! De quê? – Morreu de falta de ideias”.

Aonde ir?

  O motorista para o carro e pede uma informação na rua. Está perdido, precisa de uma orientação. Diz ao transeunte: “Preciso achar o caminho...” O transeunte, solícito, pergunta: “Aonde você vai?”. O motorista responde: “Não sei...”. O transeunte tenta novamente: “Não sabe o nome? Como é o lugar aonde você quer chegar?” O motorista responde: “Não sei aonde quero chegar. Estou simplesmente andando...”. O transeunte insiste: “Me diga onde você quer estar, então” O motorista se cala em dúvida, essa é sua resposta. O transeunte diz: “Não tenho como lhe aconselhar que caminho tomar se você não sabe aonde quer chegar. Sinto muito!” O motorista lamenta: “Estou perdido!”

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Uma flor no jardim

   Colheu uma flor no jardim. Bem delicada, de bela cor. Uma verdadeira preciosidade. Guardou-a para si. Aquela flor aromatizou e embelezou sua sala. Chegou a desenvolver um carinho por ela. Olhava a flor contente, orgulhosa. Sentia-se bem perto dela!
   Após cerca de uma semana, a bela e bem-quista flor murchou e morreu. A moça não sofreu. Desde o dia em que a pegou no jardim já sabia que em pouco tempo a flor morreria, naturalmente. Não poderia ser diferente. Já estava, portanto, ciente de sua brevidade. Nunca se sentiu dona da flor, nunca a enxergou como sua posse, nunca se apegou. Embora tanto tivesse gostado dela, quando a perdeu, não chorou. Pelo contrário, ficou muito contente pelo tempo que durou.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Imagem no espelho

  Acordou e olhou-se no espelho. Viu uma jovem, animada, despojada, pronta para tudo. Diria “sim” a todos os convites. Iria atrás, se não surgisse. Parada não ficaria.
  Acordou noutro dia e olhou-se no espelho. Viu uma velha, cansada, desanimada, indisposta. Rabugenta, nem queria falar. Só esperava a hora de voltar a dormir.
  Acordou novamente e olhou-se no espelho. Viu uma pessoa zen. Tranquila, calma, relaxada. Comeria um café equilibrado, com bastantes frutas, e faria uma caminhada para começar bem o dia.
  Acordou e olhou-se uma vez mais no espelho. Viu uma planejadora e sonhadora. Preparava-se para um futuro promissor. Hoje não conseguiria nenhum resultado, mas no futuro...
  Acordou e olhou-se no espelho, cada vez de um jeito...